Urbanismo, interesse público e código de ética
Opinião

Urbanismo, interesse público e código de ética

A partir da década de 80, o nó de autoestrada arrastou consigo o crescimento da Vila da Feira desse tempo, cabendo, nessa forte mudança de paradigma, a maior fatia de responsabilidade à construção civil. Cresceu em comprimento, largura e altura, todavia com medidas de grande controvérsia, um pouco à-vontade do freguês e raras vezes do agrado da população. 40 anos chegaram para revolucionar e dar a volta a esta minha pacata terra, mudando-lhe a face e alterando, por completo, a sua identidade, suportada, claro, pela sua legítima e irresistível vontade de “evoluir”(?!..).

Como outrora a conheci, esta minha terra pouco mais tinha que o castelo, a Igreja Matriz, o tribunal e mais três ou quatro quintas feudais. Era o chamado “buraco”, predominantemente agrícola e o que menos faltava era espaço livre para desbravar, poder financeiro para o adquirir, profissionais para o “riscar” e, enfim, quem desse aval ao “traço”. Tudo muito fácil e com a indústria do cimento à mão e sem PDM que o guiasse (entrou só em vigor em 1993), foi um vê-se-te-avias, numa corrida desenfreada para se ir “agarrando” o que estava livre e, de pronto, enchê-lo de argamassa. Foi bomba que estoirou no burgo e o estrondo foi tão grande, que só parou de se ouvir quando todo esse espaço se finou. Resultado: em vez de habitações para 1 ou 2 famílias, o que se fez foi subir a altura dos edifícios, montando esquemas para dar guarida a 24, 32, 48… etc., de acordo com a grandeza do projecto e sempre na proporção directa com o tamanho da ganância e da incivilidade, uma vez que resistir à tentação do cifrão, não era tarefa fácil.

Como noutras áreas, esta e principalmente esta, a do cimento, nasceu, cresceu e vive envolta em contestação, umas vezes porque a lei é mal concebida, outras, mesmo quando bem feita, porque interesses há que não a respeitam. É correcta a ideia de que tanto maior será o desenvolvimento, quanto mais alta se coloca a fasquia do planeamento e o seu êxito situa-se na razão directa do respeito pela lei, no pressuposto de que esta, se existe, deverá ser cumprida.  Produto, tanto mais aliciante quando mais fácil é o seu manuseamento e mais enriquecedor for o resultado.

Não discuto o actual PDM local e, até confesso ignorância para sequer o poder apreciar, mas também não preciso. Basta olhar para o que se vê. Exemplos não faltam, em especial no indefeso e desprotegido centro baixo da cidade, a parte considerada histórica, aquela que só um erro de palmatória, desinteresse e insensibilidade, imperdoáveis e fatais, permitiram que a alteração urbanística a descaracterizasse por completo. Insensibilidade e desinteresse esses que, enquanto permitiram que o “caixote de cimento” invadisse espaço que não devia, são os mesmos, que deixam, hoje, ao “Deus dará”, casas em ruína, do tipo “sem abrigo”, património histórico a compor o memorial da vergonha, para gáudio dos amantes das ideias ocas. Vila da Feira, terra pequenina, muito linda, bafejada pela sorte, com uma natureza incrível e verdadeiro museu a céu aberto, virou cidade grande, sempre submissa às ordens políticas do dúbio interesse alheio e com a obrigação e ambição do adjacente projecto de subir na vida. Hoje exibe-se com o nome de Santa Maria da Feira, com território bastante alargado, preenchido e construído, mas agora já com muito poucos sítios onde encaixar as tais rés do chão e quatro, ou cinco e, de preferência com recuado. Afinal os modelos apetecidos e os que, em todos os domínios, mais resultam, cumprindo, ainda, os desígnios estatísticos, de que, nada melhor que o peso e a dimensão do cimento armado para medir o progresso de uma região. Contudo, como localidade metida no país das adversativas, há um, “porém”; como as congéneres à sua volta e por questões de moda, vive, também, pejada de gente e carros, por tudo quanto é sítio, num frenesim constante, todos os dias da semana, tornando a vida num inferno a quem nela vive e circula, debitando ruido, poluição, muito stress e revolta. Não faltam variadíssimos prismas de leitura, mas uma boa imagem de cidade desenvolvida, aquela que lhe define o status, vê-se é pelo peso e volume da sua “argamassa” e, essencialmente, pelo número de carros que nela circula e, isto, só porque sim e porque sim, porque tem que o ser e a vida é mesmo assim.
E porque é de cimento armado que ‘falo’, exagerado no uso e discutível no sítio e na utilização dos espaços, refiro o importante papel, nem sempre respeitado, da cércea e do alinhamento, fundamentais instrumentos reguladores de qualquer planeamento territorial. Há, todavia, quem os atropele e a matriz de crescimento desta minha “afortunada” cidade, a haver quem se interesse por ela, dispensa bem aqueles que a magoam. Estruturando uma realidade que assusta, dou imagem de um exemplo, fresco e vivo, do que considero a verdadeira invasão de propriedade privada, quiçá autorizada à luz de lanterna apagada, ao “Deus dará” do destino e positivamente “nas tintas” para as consequências.Mudanças repentinas que arruínam a qualidade de vida das pessoas que investiram em suas casas, escolheram morar em determinada região e acreditaram nas regras estabelecidas.

Onde param a responsabilidade, transparência e respeito pelos direitos daqueles que já possuem residências na região?


Na Rua da Relva, ali bem perto do Aldi, nasce e cresce um prédio, de 20 e tal apartamentos, que, uma vez acabado, ostentará a força, poder e valor da sua magnitude. Quanto a mim, será a “pérola” do desrespeito, da imprudência, do insulto social, do descomedimento e da vergonha. Coisa estranha, inacreditável, mas não é ficção. Germina em bom andamento e em todas as medidas, como que tomando conta de tudo o que gira à sua volta. Do sol e do direito alheio. Em sentido figurado, será o que se pode chamar, o soba lá do sítio. Para gáudio das inteligências bacocas, não importa o que provoca. “O rei vai nu”, mas ninguém vê. A indiferença ao supremo direito de quem já lá está e merece respeito, impõe-se, não tem custos, é de borla. Como de borla são os prejuízos que causa. Não importa se esconde, o que esconde e se obstaculiza. Depois?? Bem! ficará a imagem desalinhada e tapada de uma vizinhança, já “adulta”, mas de baixo porte, a quem nada mais restará do que ter de prestar vassalagem e suportar a companhia de tão obscena superioridade, qual sentinela opressiva a sufocar a vida.

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Domingos Oliveira
COLUNISTA
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