“O sinal de uma boa história de fadas, do tipo mais elevado ou mais completo, é que, não importa quão
desvairados sejam seus eventos, quão fantásticas ou terríveis as aventuras, ela pode proporcionar à
criança ou ao adulto que a escuta, quando chega a “virada”, uma suspensão de fôlego, um batimento e
ânimo no coração, próximos às lágrimas (ou de fato acompanhados por elas), tão penetrantes como
aqueles dados por qualquer forma de arte literária, e com uma qualidade peculiar.”
John Ronald Reuel Tolkien, Sobre Histórias de Fadas
Cas Mudde, renomado politólogo e ávido investigador da chamada direita radical, sentencia que vivemos um zeitgeist populista. Na prática, isso significa que os nossos tempos são permeados por movimentos que veiculam um conjunto de ideias de baixa densidade e pouca sofisticação intelectual, segundo o qual o desenvolvimento do mundo e das coisas terrenas segue um fio condutor baseado no antagonismo irreconciliável entre o povo, um ente moralmente puro e virtuoso, e elites corruptas, corruptoras e permanentemente manchadas pela carência de valores. A segunda entidade é frequentemente identificada com a classe política – especialmente com o mais forte partido de esquerda no caso do populismo português – e com as agências mediáticas, sobrando ainda tempo de antena para a denúncia da justiça e das instituições supranacionais.
Este fenómeno está deveras sujeito a um apertado escrutínio. Asperge-se tinta sobre uma miríade de folhas brancas para enumerar um conjunto inacabável de razões para a sua emergência, mas o consenso tarda em chegar. Portanto, ainda que não me arrogue da responsabilidade de pôr termo a tão complexa discussão, permitam-me providenciar o meu breve contributo. O populismo encerra em si uma mundivisão extremamente maniqueísta: a sociedade é tão somente o produto de uma eterna luta entre bons e maus. Bem e mal digladiam-se desde o princípio dos tempos, numa contenda cujo desfecho desperta dúvida nos céticos, esperança nos otimistas e aflição nos desesperançosos. Ora, esta histeria moralista poderia ser passageira se não encontrasse sinónimos no senso comum e na opinião pública dominante, mas infelizmente obtém-nos facilmente. Temo que, por isso, teime em prolongar a sua estadia em terras lusas.
Da mais prosaica taberna ao mais restrito círculo intelectual, o debate político que se enceta em Portugal estrutura-se através de pressupostos infantis. Procura-se sempre um vilão e um herói com habilidades redentoras. Mesmo quando as temáticas se expandem para as relações internacionais, a lógica mantém-se: o sujeito que é objeto de admiração por motivos de proximidade ideológica é incontestavelmente benigno; por seu turno, a personagem que se pretende antagonizar é sempre portadora de intenções nefastas. Nem a definição de Lionel Robbins, que os comentadores da ribalta tão preciosamente guardam, os salva. A noção de que a ciência económica versa sobre o estudo do emprego de recursos (natural ou artificialmente) escassos levá-los-ia a extrapolar conclusões para o campo da política, pensamos. Contudo, apesar das expectativas, carecem da compreensão de que esses mesmos recursos constituem território de disputas entre agrupamentos sociais distintos e com interesses divergentes, manifestações coletivas que não são provenientes de imperativos valorativos específicos, mas de posições diametralmente opostas na configuração das comunidades. Importa muito o lugar que se ocupa na divisão do trabalho, nos espaços culturais e na prossecução das vontades societárias. Nenhum dos intervenientes deste matizado mosaico é necessariamente melhor pessoa que outrem, mas poderá chocar com o próximo em virtude dos rumos que adotar.
Não há panaceia para a cura dos populismos, é verdade, mas proponho que urge uma apreciação diferente do confronto enquanto conceito. É necessário educar para o conflito social. Talvez releve uma compreensão agonística da democracia, tal como preconiza a teórica Chantal Mouffe. Conceber que o oponente que se nos apresenta não é um inimigo moral poderá configurar o método através do qual finalmente abandonamos a política de conto de fadas. Prevejo que procederes alternativos nos afundem ainda mais no surto que impera, conduzindo-nos a episódios semelhantes ao do famigerado cartoon do então jornal brasileiro O Globo, que em 1964 retratava a campanha de alfabetização de João Goulart como uma obra de inspiração satanista. Não sendo tal cenário certo, acredite, pelo menos, o leitor que, ou superamos o maniqueísmo, ou permaneceremos limitados no campo da imaginação de novos horizontes comunitários.