O mês de janeiro tem sido palco de greves e manifestações constantes por parte da comunidade educativa. O clima de guerra instalou-se com o início da negociação da revisão do processo de recrutamento e colocação dos docentes, mas muitas mais são as razões da revolta. Os professores estão insatisfeitos, sentem-se “injustiçados” e “excluídos”. Falámos com cinco docentes que nos explicaram quais são as suas principais reivindicações e o que os separa das intenções do Governo. A classe assegura que a “a escola pública está doente” e apela a mudanças urgentes no setor
O ano iniciou com greves e manifestações no setor da educação por todo o país. Em Santa Maria da Feira, vários estabelecimentos de ensino encerraram, reunindo professores, diretores e pessoal não docente às portas das escolas. Além dos problemas anteriores relativos à carreira e às condições laborais, os docentes protestam contra as propostas do Ministério da Educação sobre a revisão do regime de recrutamento e colocação.
A Federação Nacional de Professores (Fenprof) convocou uma greve ao sobretrabalho e às horas extraordinárias; o Sindicato de Todos os Professores (STOP) avançou com uma greve por tempo indeterminado; e o Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE) convocou uma greve parcial, igualmente em protesto contra algumas propostas de alteração ao regime de recrutamento. No entanto, neste caso, a paralisação é apenas ao primeiro tempo de aulas de cada docente, o que significa que os professores poderão estar em greve em diferentes momentos do dia.
As diferentes greves convocadas pelas três organizações sindicais, que se encontram a decorrer, despoletaram após a segunda reunião negocial com o Ministério da Educação, onde foi passada a ideia de que a contratação de professores poderia passar para entidades locais. A tutela propôs a substituição dos atuais quadros de zona pedagógica por mapas interconcelhios, que corresponderiam, às 23 comunidades intermunicipais, assim como a criação de conselhos locais de diretores. Os professores insurgiram-se contra as novas propostas e, perante a contestação, o Governo esclareceu que os novos órgãos decidiram apenas sobre a alocação às escolas dos docentes que já estivessem integrados em cada mapa interconcelhio, e não sobre a sua contratação. Nenhuma das ideias agrada ao corpo docente.
Susana Pinto, residente em Santa Maria da Feira, tem 19 anos de serviço e continua como professora contratada. “Continuo com horários incompletos, o que não me permite subir na carreira. Um horário incompleto conta praticamente metade, o que faz com que a soma do tempo de serviço evolua muito devagarinho, pois não corresponde aos 19 anos de atividade. Como, além disso, ainda concorro para ser colocada nesta área, isso leva a que me mantenha nesta precariedade por mais tempo. Não avizinho a possibilidade de conseguir entrar no quadro nos próximos anos”, explica a sua situação profissional a professora de Geografia, antes de se manifestar contra “a municipalização” do ensino. “Não sabemos em que moldes o tencionam fazer, mas ficaríamos dependentes dos interessas das autarquias e sabemos como funcionam as coisas nos órgãos municipais… Agregarem-nos às regiões intermunicipais, não é solução para nada. Pertenço à Área Metropolitana do Porto, que abrange uma área enorme, logo posso ser colocada num agrupamento localizado noutro canto da região. Além de que não sabemos os critérios da alocação, apenas que vão escolher os professores de acordo com os projetos de cada estabelecimento de ensino. E quem supostamente vai escolher é um grupo de diretores com representantes dos municípios, ou seja, os critérios são duvidosos, pois iriam decidir pelos seus próprios interesses”, considera.
Para a professora de Geografia, se a referida proposta do Governo for implementada, o cenário da classe agrava-se. “Vou continuar na ‘dança de escolas’ e ao sabor de critérios que não são justos”.
“Injusto” é também como classifica a professora do Agrupamento de Escolas Fernando Pessoa, Helena Ferreira, a ideia da municipalização. “A municipalização iria provocar uma grande injustiça e instabilidade nos professores do quadro. O facto de pertencermos a um quadro externo dá-nos a garantia de estabilidade. Se passássemos a pertencer às autarquias e a depender de ordens de diretores e câmaras municipais, estes iriam ter o poder de mexer nas nossas colocações, tendo em conta as necessidades locais. O que significa que o nosso lugar não ficaria assegurado e que não iriam obedecer à graduação profissional [que resulta da soma do tempo de serviço à classificação final obtida no curso], que é intocável. Andámos os primeiros anos a dar aulas longe de casa para garantirmos o nosso lugar no quadro e com a municipalização ficaríamos expostos a interesses e simpatias”.
Perante o referido, uma das reivindicações das professoras passa por travar as pretensões da tutela. “Luto para que alterem o sistema de contratação e permitam a estabilização do corpo docente, abrindo um maior número de vagas para o quadro. Um contratado só consegue entrar para o quadro, em média, com 16 anos de serviço. Durante esse período, ganhamos sempre o mesmo. São demasiados anos como professores contratados e a instabilidade não beneficia nem docentes nem alunos”, refere a docente de Geografia.
No entanto, pese embora Marisol Valente concorde com a estabilização, a professora de Português do 3.º ciclo pede igualdade nas (possíveis) mudanças, que começam a circular nos órgãos de comunicação social. “Como vão vincular os professores contratados ao fim de três anos? Têm de abrir vagas que beneficiem todos os docentes. O Ministério da Educação não pode pensar só nos contratados. Penso que os funcionários da tutela não conhecem bem a realidade da classe docente e não mostram empenho, pois as decisões que tomam só geram consequências negativas na vida dos professores”, afirma a professora de 55 anos, que partilha o mesmo tempo de serviço com o cônjuge, mas este encontra-se congelado no 4.º escalão da carreira por falta de vagas. “É de uma injustiça e frieza enorme o que estão a fazer aos professores. No meu caso e do meu marido, andámos uma vida inteira a lutar para estarmos juntos e ao fim de 31 anos de carreira, o meu marido continua com a ‘casa às costas’, a lecionar em Lisboa, por falta de vagas”.
Profissão deteriorou-se ao longo dos anos
Ao longo de cerca de três décadas de ensino, muito mudou. A professora Neves aponta a “uma realidade completamente diferente”. “Sou professora há 30 anos. Quando iniciei a carreira, estive cerca de cinco anos a lecionar longe de casa, mas depois fui colocada na região. Sabíamos que era assim e tinha uma vontade imensa de ensinar, ajudar e fazer com que os jovens se desenvolvessem. Foi por isso que quis ser professora, além de ser uma profissão cujas condições eram boas. A carreira evoluía de acordo com o estatuto da carreira de docente. O salário ia aumentando gradualmente e era uma profissão boa, quer em termos de realização pessoal, quer em termos económicos”, dá conta a docente, que se vê atualmente numa posição completamente dispare. “Sabíamos que havia dez escalões na carreira e que quando chegasse à minha idade, 55 anos, já deveria de estar quase no fim da carreira. No entanto, não é o que acontece. Passei para o 5.º escalão há poucos meses e não prevejo chegar ao topo”.
A docente luta pela progressão mais rápida e o fim das quotas nos 5.º e 7.º escalões da carreira docente, porque independentemente de cumprirem os restantes critérios, para subir a esses escalões é preciso que abram vagas. Como há sempre mais candidatos do que lugares disponíveis, muitos professores acabam por não conseguir a progressão na carreira durante longos anos. “Mesmo que merecesse e tivesse avaliação para subir ao próximo escalão, o professor permanece no mesmo porque não há vagas. Há professores que são ótimos – competentes e assíduos – e desanimam porque têm ‘excelente’ na avaliação, mas não podem progredir. Perante meia dúzia de excelentes só se pode escolher um. Onde está a justiça? Não há. É como termos cinco alunos na sala de aula a merecerem cinco e só podermos dar a um. É injusto”, critica os critérios a professora de Ciências Naturais, que se mostra igualmente contra os métodos de avaliação. “O que me revolta e me afeta ainda mais é a avaliação. Quem está no escalão acima pode avaliar docentes do escalão inferior, e a avaliação baseia-se em assistir a aulas do professor, o que não diz nada”, atesta, revelando que acontece com frequência avaliarem o professor com ‘muito bom’ e depois no documento constar que “devido às quotas passou para ‘bom’”. “É terrível mudarem as classificações por não haver vagas. Isso afeta-nos psicologicamente e causa mau ambiente entre colegas, porque deixa mágoa perante quem escolhe – muitas vezes nem divulgam os critérios – e pelos que sobem de escalão, pois sabemos que também merecíamos por sermos igualmente bons. É um ambiente desumano”, descreve, acrescentando que contraria os valores que transmitem aos alunos. “Trata-se de uma avaliação competitiva, numa fase em que a escola caminha no sentido de incluir, fazer avaliações justas e não ligar às médias. Valorizar as capacidades e o que fazem os alunos ao invés de números. Queremos jovens com valores humanísticos e a crescer num ambiente saudável. Porém, o que se passa no corpo docente? O reverso”, denuncia, sem esconder que a situação lhe provoca sentimentos negativos. “Sinto-me excluída, sinto competição e não sinto democracia a nível nacional”.
A docente no Agrupamento de Escolas Fernando Pessoa, Marisol Valente, concorda. “Avaliar os professores pela observação de aulas, não é um critério justo. A intervenção na comunidade educativa e a assiduidade, por exemplo, são parâmetros importantes. É necessário avaliarem a eficácia do professor nas suas múltiplas dimensões e não nestes moldes”, defende.
Já para a professora Neves, a avaliação deveria de ser “ao grupo de professores”. “As avaliações deveriam de ser ao grupo de trabalho e não ao professor. O grupo devia autoavaliar-se. Quando trabalhamos em grupo, observamo-nos regularmente e colaboramos. Só assim evoluímos. É preciso avaliar os professores, mas em condições dignas. Vamos ser humanos a avaliar e trabalhar em grupo. Qual é o medo?”, questiona a docente de Ciências Naturais e acusa o Governo de não ouvir a classe. “Os sindicatos dizem-nos que, quando tentam falar com o Governo, são mal recebidos pela tutela. Tentam calar-nos, porque os professores são muito tolerantes. Fomos sempre, até agora. Como temos espírito de sacrifício e sentimos responsabilidade pelas novas gerações, vemos as crises económicas e decidimos esperar. Só que o nosso silêncio resultou neste caos”, expõe, reforçando que chegou o momento de o Ministério da Educação “’arregaçar as mangas’ e fazer o serviço com dignidade”. “A tutela sabe o que é o ideal, porque querem isso para os alunos. Estão a agir assim por uma questão de sustentabilidade? A situação gera problemas psicológicos nos docentes e é o Estado que vai pagar as minhas consultas. Têm preguiça para pensar, mas chega. Temos de parar de estar calados. A comunidade educativa está destroçada e estagnada”, acrescenta.
Susana Pinto está do lado da homóloga. “Os professores estão revoltados. Há alturas de luta em que não se veem os professores todos mobilizados, mas desta vez sim. A municipalização foi a gota de água”, refere, enquanto outra docente, que prefere manter o anonimato, vai mais além. “Não faz sentido haver desvalorização e destruição das carreiras e das condições de trabalho na escola pública. A escola pública existe atualmente à custa do sacrifício e do empenho dos profissionais que a compõem. É impossível trabalharmos pelo que nos dão, o que nos exigem não é devidamente recompensado. Temos de ensinar e formar jovens, e vemos todo o investimento do país a ser canalizado para o que não é essencial, como a TAP”.
A docente aderiu às recentes greves pela defesa da educação. “Há interesses superiores a nós [docentes] e que absorvem todos os recursos. Quem emana esses interesses são as pessoas que estão no Governo e se nos mantivermos assim, no futuro, vamos ter uma sociedade em que só terá acesso à educação quem tiver dinheiro”.
Professores exigem recuperar tempo de serviço
A carreira dos professores esteve congelada em dois períodos entre 2005 e 2017 durante nove anos, quatro meses e dois dias. Em 2019, o Governo aceitou recuperar algum desse tempo, mas apenas quase três anos. O assunto não está esquecido e, por isso, a recuperação total do tempo de serviço está entre as principais exigências dos docentes. A professora Helena Ferreira do Agrupamento de Escolas Fernando Pessoa dá a voz por este tema. “Tenho 55 anos, estou no 6.º escalão, porque tive a sorte de não ter ficado retida no 4.º, mas não vou conseguir chegar ao topo da carreira, porque precisava de mais 16 anos de serviço. Nos últimos anos, houve uma série de medidas lançadas pelo Governo para atrasar a progressão dos docentes e inclusive no Governo de José Sócrates até recuamos todos um escalão. Só avançámos com o descongelamento parcial no Governo de António Costa, mas ainda temos seis anos, seis meses e 23 dias de trabalho a reaver”.
Perante a recuperação do tempo de serviço por parte de “colegas das ilhas da Madeira e dos Açores, assim como de outros profissionais noutras carreiras públicas”, a professora de Português e Francês sente-se injustiçada. “Somos tratados de forma diferente e é impensável trabalharmos mais uma década sem condições e meios. Vamos continuar a lutar, porque a escola pública está doente e necessita urgentemente de novas políticas. Os professores têm de ver que há predisposição para melhorarem as suas condições de trabalho”, diz, acrescentando que têm igualmente de solucionar “o excesso de burocracia”, que os impede de “dedicar o máximo de tempo ao mais importante: as práticas letivas”.
Encarregados de educação “preocupados”
Sem aulas recorrentemente nos últimos dias, os alunos têm enfrentado as consequências da paralisação no ensino, que tem consequentemente deixado os pais e encarregados de educação preocupados. “Nota-se que já há uma preocupação. Apesar de aceitarem a nossa luta, não percebem as reivindicações, pois se tivessem perceção do que está a acontecer, juntavam-se aos professores”, julga Susana Pinto. Já a professora que prefere manter o anonimato, não tem dúvidas de que só assim podem alcançar as pretensões. “Também sou encarregada de educação e por vezes [o papel] entra em colisão com o meu trabalho. Há pais que ‘sentem na pele’ o que está a acontecer e percebem, até porque querem um ensino de qualidade para os filhos. Porém, por variadas razões, outros dizem que entendem, mas estão contra. Acham que devíamos arranjar outra forma de nos manifestarmos, mas só assim tem impacto. Estamos a tentar ser ouvidos há muito tempo e nada. Agora, parece que estão a ouvir-nos, pois está a causar impacto na vida das pessoas. Somos necessários todos os dias. Os miúdos vêm à escola todos os dias. Não há ninguém que não esteja a ser afetado direta ou indiretamente”.