Bucolismo feirense I
Opinião

Bucolismo feirense I

“Experimentar tanto quanto possível todos os dias pequenas alegrias e distribuir com parcimónia os prazeres mais intensos e exigentes pelos dias feriados e pelas horas de tempo livre, é isso que gostaria de aconselhar a cada um de vós que sofre de falta de tempo e desinteresse pela vida. Sobretudo para que possamos restabelecer-nos, para uma redenção e um alívio diários, são-nos concedidas as pequenas alegrias, não as grandes.”

Hermann Hesse, Da Felicidade, Difel

Qual a razão de acreditarmos que banais são as inocências que nos condenam à insignificância? Parados no espasmo da modernidade, desunidos pela fronteira dos grandes momentos, lá se vão diluindo as pequenas coisas por entre marasmos de grandeza, numa procura definitiva por acontecimentos marcantes que em poucos nos valorizam, pois nem só com dinheiro se vive. O stress que apoquenta quem acede à rotunda do Hospital São Sebastião, cruzando os mais concorridos acessos de Santa Maria da Feira, alimentado pela violência matutina de quem segue atrasado para o trabalho, com o trânsito (em frente) que rasga a via embelezada por dois grandes monumentos: o Mercadona, de um lado, o Lidl, do outro, leva o viajante à conclusão de que é exigível um refúgio só seu. É nesses momentos que os contributos terceiros definem (largamente) a miséria da vida corrida, do grotesco (e absoluto) desdém pela paz. As sugestões que nos introduzem aos segredos (locais ou não) que servem o propósito de solucionar os problemas de uma semana sobrecarregada com frustrações e conflitos são mais que bem-vindos. Como tal, quando me pediram que parasse e que fosse, eu fui. Isto é paradoxal apenas para quem nunca parou a fim de chegar a algum lado. Sem saber bem como, terminei num percurso folclórico, aberto à imaginação e à sonolência, que me conduziu a um jardim verdejante, localizado numa zona periférica do concelho. Foi assim que visitei Caldas de São Jorge, com o intuito de conhecer um cantinho que (a convite) procurei assumir como meu. Atravessando a ponte, fui recebido pela visão de um jardim extensamente limitado pela aragem, com vagas de transcendência para-citadina, onde me embebi nos murmúrios naturais com um requinte que agradaria ao mais pequeno ser. Deitado na relva, sobre uma toalha de picnic, observei as vagas de luminosidade até ao final de tarde, em que as próprias páginas ‘Da Felicidade’, de Herman Hesse, assombraram os resquícios solares que preparavam a fauna e a flora para a pernoita tardia, típica do proveito de

um dia veranil. A companhia (bela e amável) sorvia as uvas ainda frescas e entregava uma fatia de bolo com o qual me satisfazia, bem como às formigas e a outras pequenas criaturas que se entretinham com a captura de pequenas delícias açucaradas. O riacho corria paralelamente, ombreando (melodicamente) com os cantos dos pássaros e com o urro farfalhante do vento que enfrentava as folhas e os ramos, com a audácia característica que define as forças da natureza. O tempo parecia (pela primeira vez) acabar naquele infinito e desconhecido termo, tão discretamente alocado à longínqua compreensão do nosso ninho, que parecia todo um novo paraíso. No jardim da Amália Rodrigues, alicerçado no propósito de homenagear a mulher (simbólica ou figurativa) que carregou tamanho título (o de ser Amália) vi, tristemente, que é comum cair-se no esquecimento, independentemente do proveito que a nossa obra possa proporcionar. Nesse espaço profundamente pitoresco, não foi possível desconsiderar a falta de atenção com que se alinhava o troço pedregoso, início do caminho que se estende por uma larga parte do território, no qual caminhavam famílias completas, incluindo as crianças que, travessas, corriam à revelia dos pais, ou os avós, jovens de outrora, que agora encontram no passo lento um meio de justificar o proveito da vida demorada e pausada. O efeito de um discurso lacónico, confessando à companhia a desilusão de ver tão digna ambiência esquecida e abandonada produziu os justos comentários: havia em mim urgência de ver sempre o que pode ser melhor. Não me condenem, sou assim. Além disto, observar (e sentir) a erva alta, comichosa, e os resíduos – o lixo – ao longo da margem, impossibilitavam reconhecer que o canto maravilhoso o era por si só. Esse infortúnio de ter a mão humana apenas tocado para obscurecer o espectro mágico dessa obra terceira, encareceu a experiência. Um problema comum perante a mão que tudo pode mudar e fazer (a bem), mas que opta pelo oposto. O abandono consignado à derrota das obras públicas, que são (depois) descredibilizadas por força da falta de compromisso. Faz pensar no que teria dito Saramago, numa outra ‘Viagem a Portugal’, se tivesse chegado cá e, contrariamente, decidisse percorrer outras andanças que não as do Castelo, para encontrar num espaço tão belo a perversão de engolir a mágoa de um vazio imenso…É infeliz que só perante grandes eventos se lembrem que do que é essencial para alguns, esquecendo, por largos meses, o que é necessário para todos nós.

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