Uma nova era para Portugal, clamava o Rei.
Ali do Castelo, o único de 4 torres, que já foi só de três, onde conspiraram os apoiantes do menino Afonso para o nascer de uma nação (verdade que há um berço, mas citando a minha querida Joana Vaz Teixeira «ninguém nasce no berço»), alicerçada no feito de um filho «a bater» na mãe e na tia, só para abreviar a história, andava o regente, feliz e contente, distante do povo com olhos no seu reflexo e ouvidos (não se deixem enganar pelo tamanho das orelhas) que apenas conseguem ouvir a sua voz.
Aos que sempre cuidaram deste nosso património, o rei anterior, ido para novas paragens, agradeceu com um aceno. Uma chatice um sítio tão grande ter uma Comissão de Vigilância dedicada e conhecedora, que cuidava diligentemente do que restou do castelo, sempre é preferível encher os cofres de alguém mesmo que a norte, a muralha se vá desfazendo.
Este ano, «uma nova era». Repete o rei, uma e outra vez.
Eu, que já vi a minha irmã coroada rainha, o meu Pai proclamado Conde, a minha Mãe Dama da corte, tenho passado os séculos desta viagem com uma simples espada de madeira, às vezes arco e flecha, e ao passar do cortejo sempre ao lado do povo, ainda clamo por água pública e pelo direito ao espaço público.
Mas seja qual for a dinastia, a história não muda e nas eras parecem ser mais velhas. Os reis são cada vez mais novos, mas parecem ouvir pior e ver muito mal. Mas devem ter algum mago poderoso ao seu lado porque inebriam o povo com as suas histórias e o impensável repete-se. Todos os anos. Todos.
O rei, cada vez mais longe, uma vez por ano ergue uma muralha – não no nosso castelo que ele pensa que vendeu – essa parece não parar de cair – no centro da cidade. Talvez imbuído dessas novas eras onde tudo se compra e vende, cobra portagem a quem ouse entrar nos seus domínios. Assim dito, quase parece um episódio da Guerra dos Tronos, como se guardasse a muralha do Norte para impedir que entrem os Whitewalkers.
Mas não. É 2024, não é uma era medieval, mas ainda assim o Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira persiste numa prática sem qualquer base legal de sustentação – o centro da cidade fica fechado e só entra quem tiver uma pulseira. Paga. Mas na foto fica sempre muito bem a oferta nas escolas. Pergunto eu, já que todos os anos faço o mesmo: ao ser parada em frente à Câmara Municipal e aos CTT pedem-me que mostre a pulseira paga. Pergunto que pulseira e para o quê. Os olhares confusos sucedem-se. Perguntam-me onde vou, respondo que não é da conta de ninguém. Outras vezes digo que vou ao multibanco, vou tirar fotocópias, vou aos correios, enfim. As respostas vão variando: «então o meu colega vai acompanhá-la». Educadamente recuso e evidencio o direito à livre circulação. O acesso aos edifícios públicos. Questiono qual a base legal da vedação do espaço público. «Então quando voltar venha por aqui». Sorrio e pergunto se serão saudades ou controlo da minha liberdade individual. E até hoje não tive resposta. Algo comum quando falamos do Executivo do PSD, mas também dos vereadores do PS. E da mesa da Assembleia Municipal. Talvez a invenção chamada correio eletrónico ainda não lhes tenha chegado, o que é estranho porque em 12 anos eleita na Assembleia Municipal nunca tive problemas. E a verdade é que os trabalhadores dos serviços municipais e da assembleia municipal respondem sempre e com grande brevidade. Com exceção da Divisão Social, o que não deixa de ser curioso.
O que também é curioso é observar «parques de estacionamento» que cobram pela utilização do espaço. Aí normalmente gosto de perguntar pela licença de ocupação de espaço público, a que título é cobrado o valor. É que o regulamento de taxas do município não tem nada sobre o assunto. E se se experimentar pedir recibo, é sempre uma situação bastante confrangedora.
E esta é, até ver, uma história interminável. Então, lá volto à espada de madeira, juntando-me ao povo: Sua Majestade de Albergaria – conceder-me-á a gentileza de fundamentar o encerramento do espaço público, a proibição de livre circulação e acesso aos serviços públicos e comércio local e a legalidade da cobrança do estacionamento, indicando o que os privados pagam à Coroa pelo uso e cobrança do espaço e a que título e como declaram tal rendimento?
Se houver resposta e fundamentação prometo que me porto bem e não questiono os voluntários no pórtico (outra caricata e medieval situação de trabalho não pago) e compro a pulseira para me deslocar livremente na rua. Já sabemos que se fosse uma manifestação Sua Majestade clamaria pela liberdade de trânsito e circulação. Essa liberdade de conduzir um carro sobre a qual não fala a Constituição, mas talvez estejamos ainda no período anterior à primeira constituição – nascida em plena monarquia. E hoje, será desta que consegue ouvir e responder? Ou daí das muralhas destruídas que cercam as torres de menagem não se ouve bem? Talvez consiga ler melhor. E deixo a sua Majestade e nobre corte um poema com o qual se identificarão (mas nunca com o seu autor, José Saramago): «Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo… e, já agora…»
Vitória, vitória… terá terminado esta triste e medieval história?