As próximas propostas do FIMUV apresentam artistas que transformaram o fado e adequaram-no à contemporaneidade: a dupla Fado Bicha estará em palco sexta-feira, com uma mensagem focada em questões como identidade de género e racismo, e Júlio Resende atua no sábado, um dia depois de lançar o novo disco ‘Filhos da Revolução’, em que aplica à essência fadista a linguagem do jazz
Dos 14 espetáculos da edição de 2023 do FIMUV – Festival Internacional de Música de Paços de Brandão, dois são já no próximo fim-de-semana e têm como elemento comum o fado, “explorando-o de forma inovadora e liberta de estereótipos”. A missão cabe na sexta-feira à dupla Fado Bicha, que atuará no auditório da casa-mãe do festival, a associação CiRAC, e continua no sábado com o pianista e compositor Júlio Resende, que subirá ao palco da Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira com o seu Fado Jazz Ensemble, na primeira apresentação pública do novo disco ‘Filhos da Revolução’. Ambos os concertos começam às 21h30 e têm entrada livre.
“Serão dois dos melhores momentos da edição deste ano do festival. Embora em estilos muito distintos, expressos de forma mais imediata no contraste entre a arrojada estética dos Fado Bicha e a elegante sobriedade do Júlio Resende e dos outros músicos que o acompanham, o certo é que ambos os projetos aplicam uma surpreendente e inspiradora carga de inovação a um estilo que, durante décadas, se manteve inalterado e muito convencional no conteúdo”,
antecipa Augusto Trindade, diretor artístico do FIMUV, em nota de imprensa.
Lila Fadista e João Caçador são os dois músicos que constituem a dupla Fado Bicha. Assumem o projeto como sendo “musical, ativista e de intervenção”, visando “uma exploração inédita dentro do universo fadista, ultrapassando as barreiras de género rígidas do fado tradicional e criando narrativas para temas que não tinham ainda expressão”. Para esse efeito, os dois artistas apostam numa imagem cénica audaciosa – que pretende representar a comunidade LGBTI e sensibilizar para a problemática da identidade de género – e privilegiam letras que refletem sobre temáticas além do amor e da vida doméstica – abordando questões atuais como o racismo, o colonialismo, o feminismo e os direitos dos animais.
“O que trazemos [ao palco] é basicamente uma subversão da regra hétero-normativa, muito forte no meio do fado tradicional e na sociedade portuguesa em geral, reclamando o direito de nos apropriarmos de um património que também é nosso e de o explorarmos de acordo com as nossas identidades e experiências – o que, no fundo, é a base de qualquer processo artístico, seja ele encarado como subversivo ou não”, explicam os músicos.
50 anos de Abril no novo disco de “um verdadeiro pioneiro”
Referindo-se como o único artista autorizado a usar em palco gravações da fadista Amália Rodrigues (1920-1999), o pianista e compositor Júlio Resende tem desenvolvido nos últimos anos uma linha de fado-jazz, que tem sido elogiada pela crítica da especialidade e devido à qual a revista Jazzthetik o classificou como “um verdadeiro pioneiro”. Para o cruzamento entre esses dois géneros musicais, o artista apresenta-se com o quarteto Fado Jazz Ensemble – que integra ainda Bruno Chaveiro na guitarra portuguesa, André Rosinha no contrabaixo e Alexandre Frazão nas percussões – e será nesse formato que o FIMUV acolhe no próximo sábado a primeira apresentação pública do novo álbum ‘Filhos da Revolução’.
O nono disco de Júlio Resende – a lançar na próxima sexta-feira, 13 de outubro – evoca o 50.º aniversário da Revolução do 25 de Abril e, segundo o pianista, “não só explora as múltiplas facetas da Liberdade como também destaca um elemento frequentemente negligenciado nas celebrações desta data: o fim das guerras coloniais e o início de uma nova era de solidariedade entre os povos”. É por isso que o álbum se anuncia como “uma ode à paz e à liberdade”, enquanto “valores que nunca deverão ser dados como adquiridos”, e exibe uma sonoridade que, além do fado e do jazz, se inspira igualmente na música africana.
“O meu pai e grande parte da minha família são de Angola, pelo que foram muito marcados pela Revolução”, recorda Júlio Resende. “Poderemos dizer que a ideia sentimental deste novo disco sempre esteve muito presente na minha construção musical e pessoal”, admite o músico, realçando, contudo, que o seu novo trabalho evoca mais do que raízes familiares. “A inspiração para este novo álbum não foi apenas a história da minha família, mas também este acontecimento único em todo o mundo: uma revolução que não usou de violência extrema para atingir a paz, que tentou ao máximo disparar flores em vez de balas”.