Nem vemos os comboios a passar
Opinião

Nem vemos os comboios a passar

Falar de transportes públicos no município feirense é uma espécie de falar de um desejo ou um sonho coletivo que nos acompanha desde que nascemos.

A dispersão territorial do nosso município, como uma rede viária interna cuja manutenção ou melhoria parece parada há mais de duas décadas, um planeamento que simplesmente não existe (a qualquer nível), a visível decadência dos transportes coletivos e o doloroso abandono da linha do Vale do Vouga não são indiferentes a absolutamente ninguém que tenha nascido e/ou vivido cá. Tenha 8 ou 80 anos.

Nos anos 80 e 90, ir e vir da escola ou centro da cidade, era uma epopeia que me ocupava mais de uma hora em cada deslocação. A única vez que me aventurei a apanhar um autocarro (privado), era tanta gente que acabei com a minha pequena perna esquerda aos onze anos esmagada pela dobradiça da porta. Durante anos julguei que o Transfeira seria mito urbano, até que o vi duas vezes nos últimos dois anos.

Em 2007, após mais de um ano de recolha manual de assinaturas, eu e o Óscar Almeida de São João da Madeira, conseguimos pela primeira vez levar uma petição à Assembleia da República pela requalificação e modernização da Linha do Vale do Vouga, algo que é consensual para a generalidade das pessoas, que nas reuniões que pedimos a várias instituições, nomeadamente à REFER nos foi apresentado como consensual também, e que inclusive mereceu a concordância na Assembleia Metropolitana do Porto após ter apresentado não apenas essa proposta mas também a necessidade de integração multimodal, nomeadamente reconvertendo a linha para permitir que o Metro chegasse aos concelhos do sul da área metropolitana (plano que foi aprovado em estratégia nacional de mobilidade em 2015), estamos em 2024 e talvez nunca tenhamos estado tão atrasados em termos de políticas de mobilidade. Em tempos de milhões disponíveis num PRR que parece servir apenas alguns e que acaba sempre em investigações judiciais, o governo tem à cabeça ministros e secretários de estado que são precisamente da Feira, São João da Madeira e outros concelhos do nosso distrito. Aliás, um deles foi presidente da Junta Metropolitana do Porto – Castro Almeida – e é aqui que estamos.

Desde dezembro, sem saída.

A Rede Unir, que serviria com um só passe toda a área metropolitana, continua a excluir Vale de Cambra, Feira, Oliveira de Azeméis, São João da Madeira. Os trajetos concessionados e pagos, mensalmente, mas sem funcionar e sem qualquer consequência. Os municípios sem resposta, a Linha Andante nada sabe, a Área Metropolitana (responsável pela rede) não responde. E o que mais me intriga é o silêncio, sobretudo de quem precisa dos transportes. Num momento em que os rendimentos familiares não chegam, ao invés da exigência de funcionamento, as pessoas continuam a optar por culpar funcionários do poder local  – trabalhadores como nós – que não têm informação e encontrar alternativas que passam pela divisão do transporte privado. E nada exigem dos titulares dos poderes públicos que são os únicos que podem efetivamente quem pode fazer alguma coisa. Como diz a canção de Nuno Prata, aqui vamos cantando e rindo até que toda a porcaria nos chegue aos ouvidos. Mas nem assim, porque já passou dos ouvidos, deixamos de cantar e rir?

Recentemente foram publicados os horários para Santa Maria da Feira, esta semana a informação oficial é a de que não estão em funcionamento com exceção de duas carreiras para Ovar. Foi deliberada a criação de uma nova empresa para administrar a rede (mais cargos, mais encargos, mais dinheiro público sem solução imediata).

Apenas o vereador José Pedro Rodrigues, de Matosinhos, tem insistido no assunto (CDU), com mandato recentemente suspenso.

E entre dezembro e maio, todos nós, nem comboios vemos passar e estamos à espera de que caiam autocarros do céu, talvez.

A mobilidade sempre foi uma questão central no nosso município, cuja resolução passou pelo transporte privado. Solução que numa sociedade dita desenvolvida, significou que durante anos centenas de crianças demoravam mais de uma hora a pé só para chegar à escola. De madrugada ou de noite. Que pessoas deixassem de aceder a serviços de saúde por não ter como vir de Vale de Cambra, por exemplo, ao hospital. Que quem trabalha fora da Feira possa não ter como ir trabalhar.

Talvez seja hora de dedicar um tempo a este assunto, na Câmara, na Assembleia Municipal, no Governo e que cada um de nós aproveite (enquanto os há) os mecanismos de participação e fiscalização destes órgãos para exigir o que é nosso – porque o serviço está pago por nós e é um direito – não qualquer um – um direito fundamental interligado com tantos outros. E nós, que somos mais, enquanto não tivermos essa consciência, continuaremos neste retrocesso que, no que me diz respeito, me envergonha profundamente. Viver numa cidade onde a única forma que tenho de me deslocar é com transporte próprio. Uma vergonha imensa.

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