“Antigamente, na sala, Ludovina tocava um bocado de piano (…) Certas músicas que ela tocava lhe
davam a sensação de ter o coração acariciado por alguma coisa de aveludado e doce, que o fazia
desfalecer: sobretudo uma certa valsa Souvenir d’Andalousie… Há quanto tempo ele não a ouvira
tocar!”
Eça de Queirós, Alves & C.ª
Consente o leitor que o envolva num exercício de interpretação? Dissequemos então o lacónico slogan Make America Great Again. Traduzindo à letra, obteremos qualquer coisa como “Fazer da América Grande Novamente”. Porém, se atentarmos à semântica da palavra “great”, perceberemos que esta também equivale em português a algo semelhante a “extremamente bom”. Assim, tomando por honesto Donald Trump, ex-presidente e atual candidato pelo partido republicano às eleições deste ano nos Estados Unidos, questiono: em que exato momento foi a América extremamente boa? Bom, um supremacista branco recordar-se-á com ternura da era das leis segregacionistas Jim Crow, mas um certo setor da população repudia-as (e com toda a razão). Já um cidadão pertencente à geração baby boomer lembrar-se-á do período pré-Reagan, quando os salários reais aumentavam anualmente e a construção de um modus vivendi relativamente confortável – com direito a casa e carro – era uma realidade plausível para o trabalhador comum. Contudo, esses anos estão muito próximos do movimento dos direitos civis e das mortes prematuras de Malcolm X, Martin Luther King e Fred Hampton, ícones que ainda hoje provocam mágoa nos corações de uma multitude de afro-americanos.
Com Make America Great Again, Trump dirige-se a um amplo substrato da sociedade. Contudo, se há conclusão a deduzir do que abordámos até agora é a de que não há consenso quanto à época em que as ‘coisas eram melhores’. Ainda assim, a frase foi e continua a ser extremamente eficaz. Configura uma utilização perfeita daquilo a que os autores Lance Bennett e Alexandra Segerberg apelidam de personal action frames, que aqui tomo a liberdade de traduzir para “quadros interpretativos de ação pessoal”. A característica transversal a qualquer um destes quadros é a abstração: são vagos o suficiente para despertar o interesse de indivíduos pertencentes aos mais distintos segmentos do espectro político e às mais diversas comunidades. Para cada uma destas pessoas, o quadro interpretativo tem um significado único e diferente de todos os outros. A título de exemplo, na ótica de uma senhora de 60 anos de classe média, a América era extremamente boa quando os seus filhos ainda residiam sob o seu teto e o marido auferia um ordenado que lhe permitia dedicar-se plenamente à vida caseira. Já a perspetiva de um bilionário divergirá bastante. Afinal, nas últimas décadas, os grandes conglomerados económicos têm desfrutado de numerosos benefícios fiscais em solo nacional. Os populistas são hábeis navegantes em marés de indefinição e ambiguidade. Sem nunca cometerem o fatal erro de se tornarem demasiado específicos e detalhistas nas imagens que pintam, sucedem em apelar à prosaica nostalgia de quem possui algo que o prende ao passado. Muitos de nós sentem falta da infância, da simplicidade de uma vida que não se pautava por estritos horários e compromissos que nem sempre assumimos de livre vontade. Nutrimos permanente carinho pelas criancices de outrora, das quais nunca derivámos consequências maiores do que um acerto de contas em casa, quando os pais se vissem obrigados a manifestar alguma austeridade assertiva, de modo a corrigir tendências menos úteis e aconselháveis. Os ‘Trumps’ deste mundo sabem-no bem. Por isso, evocam momentos inomináveis, memórias de todos e de ninguém, lugares-comuns que só encontram evidência na recordação seletiva de eventos difusos que nos acalentam o ventre. A verdade, a tangibilidade e a verificabilidade ficam em segundo plano. Só importa o baloiço ora movido pelo agitar das pernas, ora movido pelo vento, os lanches confecionados pela mãe que nunca perderia as forças para tais empreitadas e a certeza melancólica de que já fomos mais felizes que hoje. Debalde nos expliquem as razões, a economia, a geopolítica e a finança pública. Que se danem. Ai, os bons velhos tempos…