O 25 de Abril visto e sentido por mim
50 Anos do 25 de Abril

O 25 de Abril visto e sentido por mim

Esta data marcante, para a sociedade Portuguesa, apanhou-me – sem grande surpresa- quando já completara 25 anos de vida, mais de dois anos depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório como técnico de radiologia no maior Hospital Militar (HMP) do país, em Lisboa.

Sendo praticamente o único técnico do Serviço de Urgências e do Bloco Operatório, passaram-me pelas mãos incontáveis mutilados físicos e mentais vítimas de uma guerra insana e descomunal para as exíguas capacidades humanas e logísticas de Portugal.

Esta penosa experiência permitiu-me ter uma visão bastante abrangente sobre o estado da ‘guerra nas colónias’, cujo impasse e gravidade prenunciava um descalabro militar iminente. Assisti a conversas travadas entre oficiais (especialmente capitães) inconformados com uma guerra insustentável e manifestamente adversa aos seus interesses pessoais e de classe.

Passaram-me pelas mãos alguns oficiais atingidos a tiro pelas costas eventualmente desferidos por militares subalternos descontentes ou revoltados com os seus comportamentos excessivamente autoritários. (Estes casos eram ocultados, não havendo deles notícias, processos ou punições).

Apesar das minhas atitudes firmes, de quase insurreição, mas genuinamente pauteadas pela competência e humanismo, fui – para minha surpresa – convidado a continuar nas funções que preferisse como militar ou civil no HMP. Recusei o convite e, a 10 de Janeiro de 1972, regressei à vida civil. Não era possível continuar a colaborar por vontade própria com um regime que estava prestes a explodir como um barril de pólvora que só se aguentava pela teimosia e fanatismo das elites militares e civis, que beneficiavam como nababos com a situação.

Na manhã do dia 25 de Abril deslocava-me de carro para o Porto e, pelas 8,30 horas, vi dois soldados armados e ensonados à entrada da ponte D. Luiz I. Percorri a ponte e vi mais dois soldados no lado do Porto. Fiz saltar a cassete do rádio que noticiava estar em marcha um golpe militar. Esta ação militar de grande envergadura estava a ser executado pelos capitães que – a meu ver – estavam a lutar impelidos mais pelas suas causas do que pela defesa do povo Português.

No local onde me encontrava em trabalho de impressão de fotografias, pairava no ar um contentamento atordoado e suspenso nos comunicados das Forças Armadas, (FA) transmitidas pela rádio.

A meio da tarde, os comunicados das FA continuavam a aconselhar calma e a incitar as pessoas a que recolhessem ordeiramente às suas casas.

Em todo o percurso de regresso a Vila da Feira, quase não havia movimento nas ruas e estradas. As pessoas não queriam manifestar-se enquanto não soubessem, de fonte segura, o resultado deste golpe militar e que mudanças traria às suas vidas acostumadas a depender em tudo, das emolas e favores dos governantes. 

Ao fim da tarde o Dr. Marcelo Caetano rendeu-se às FA no Quartel do Carmo na condição de ser o general Spínola a assumir o poder. A televisão transmitia imagens do Largo do Carmo, dos militares e das manifestações dos populares nas ruas de Lisboa. Os comunicados das FA proferidos em voz grave e solene, intercalados com música clássica, sucediam-se em catadupa gerando um clima de ansiedade e torpor.

No centro da Vila, no dia 25 e seguintes, o ambiente era o do costume, apenas os pequenos grupos habituais dos cafés debatiam o assunto de forma contida e abafada. Percebia-se que, finalmente, estava a ocorrer uma mudança de regime, mas qual seria?

Ao fim da tarde do dia 27 de Abril fui abordado na minha loja por um notório advogado e um respeitável comerciante que me convidavam para discursar no dia 1 de Maio, na varanda da Câmara Municipal, para comemorar o êxito da Revolução e o 1º Dia do Trabalhador em Liberdade. Recusei, dando como argumento ser muito novo e não perceber nada de política. Tentaram demover-me, alegando conhecer as minhas “façanhas” de revolucionário durante a vida militar. Desvalorizei esses “atributos”, mas voltaram à carga nos dias seguintes, inclusive meia hora antes do início das comemorações. Iam anunciar-me pelos altifalantes e não tive outro remédio senão aceder e escrever o meu pequeno discurso em menos de 15 minutos.

Fui o terceiro orador e, para meu enorme espanto, fui apresentado como representante dos Comerciantes e Industriais do Concelho da Feira. Fiquei fulo com esta deferência inadequada.

O meu curto discurso começou por “prestar homenagem” às FA que, só ao fim de 48 anos se tinham “apercebido” que algo de errado se passava em Portugal. Incitei o povo a exigir que FA cumprissem o que estavam a prometer, asseverando que em tempo algum, as FA provaram defender plena e verdadeiramente os legítimos interesses do Povo Português.

A parte final do discurso incentivava ao trabalho, à criação de riqueza, ao desenvolvimento e justiça social, à liberdade responsável, porque, só por este caminho, era possível construir uma Verdadeira Democracia.

A Praça e as ruas adjacentes estavam repletas de povo que rejubilava a cada frase dos oradores, aplaudindo entusiasticamente.  

Os discursos que se seguiram eram cada vez mais diferentes do meu, até que o último orador, em arrebatamento quase brutal, apelou à destruição de tudo o que fora construído durante a “Longa Noite Fascista” – enquanto apontava para o edifício em construção da FNAT (INATEL).

Foi nesse momento que parei de fotografar este evento memorável. O discurso desta “notável personalidade política” deixou-me prostrado. As minhas ideias e ideais estavam afinal tão díspares das deste reputado político, que me senti defraudado a ponto de não querer sequer revelar os filmes. Algo me fez recuar e, mercê dessa decisão, mais de 20 anos depois, essas fotografias viram a luz do dia e estão por aí, para retratar o que, provavelmente foi o momento mais significativo relacionado com o 25 de Abril de 1974 em Vila da Feira. Dali em diante, fez-se o caminho que a história nos revela. Estamos ainda numa democracia incompleta, face ao entusiasmo e às promessas de quem nos foi governando. Possivelmente tudo seria diferente, se outras elites menos extremistas e interesseiras tivessem conduzido os destinos deste País.

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