Rainha Santa Isabel e Santa Maria da Feira: uma estória por contar
Opinião

Rainha Santa Isabel e Santa Maria da Feira: uma estória por contar

Na semana em que se marca a data do falecimento da Rainha Isabel de Aragão, entre nós Rainha Santa Isabel, importa recordar a sua passagem pelas Terras de Santa Maria.

Certamente reconhecerá o(a) Leitor(a) um velho adágio popular dando conta de que “quem conta um conto aumenta um ponto”. É assim nas lengalengas do nosso dia-a-dia como o é nas estórias mais remotas que nos chegam pela tradição oral. Não raras vezes deparamo-nos com a impossibilidade de discernir com toda a precisão onde termina a ficção e começa a realidade, optando cada um, em juízo próprio, por reconhecer como mais ou menos válida uma narrativa histórica. No entanto, independentemente do valor que cada um atribui a estas realidades fantásticas de um passado mais ou menos remoto, elas fazem parte do nosso imaginário coletivo e moldam a nossa perspetiva sobre o tempo e a nossa ação sobre o espaço, metamorfoseando algo intangível (possivelmente até irreal) num poderoso motivo aspiracional. Como tal, Caro(a) Leitor(a), os Estados e as Regiões dentro dos Estados, agarram-se com “unhas e dentes” a mitos fundadores, a contos virtuosos e a epopeias coletivas, para granjearem estes marcos identificativos para as suas populações, na expetativa que estas os sigam e transcendam.

Feito o introito, quero-lhe falar de Santa Maria da Feira. O que há para desenterrar das garras do tempo em Santa Maria da Feira que nos possa surpreender, influenciar e até galvanizar? Desde logo, a teoria de que Portugal (em particular a ideia de um estado independente) nasceu neste território. Não será preciso discorrer muito sobre isso para que se compreenda a dimensão dos proventos para Santa Maria da Feira decorrentes de uma associação direta à fundação da nação. Basta olhar para Guimarães e o que daí decorre em termos de identidade, mas também numa perspetiva turística (e económica). No entanto, já abordei esse tema nos fóruns políticos, já escrevi e falei profusamente sobre ele, pelo que, de momento, vou deter-me num outro tema, de impacto tão ou mais relevante. Quero falar-lhe, Caro(a) Leitor(a), da Rainha Santa Isabel e a sua passagem por Terras de Santa Maria.

Tenha ou não lido alguma coisa sobre o assunto, de forma muito resumida, o que se sabe é o seguinte: (1) a Rainha Santa Isabel, já viúva de D. Dinis, numa peregrinação para S. Tiago de Compostela, passava por estas terras e por cá decidiu descansar, mais precisamente na Arrifana; (2) ao que consta, terá visto uma criança que era cega e tendo-se apiedado dela, impôs as suas mãos na cabeça da pobre criança, tendo-se concretizado, de imediato, um feito milagroso, uma vez que a criança começara a ver; (3) a mãe desejando retribuir, dispõe-se a fazer o que for preciso, ao qual a Rainha, com modéstia como era seu feitio, terá pedido apenas laranjas para saciar a sede; (4) a mãe da criança deparava-se com o problema das suas laranjas serem azedas e de possivelmente não satisfazerem a Rainha; (5) a Rainha não se incomodou com esse facto e ingeriu uma das amargas laranjas; (6) uma semente das laranjas amargas caiu por terra e dali brotou uma laranjeira que apenas dava laranjas de sumo doce.

Uma estória tão singela! O que poderá ter ela de mais a nos dizer? Muito e é para isso que reclamo a sua atenção.

O primeiro ponto a ter em conta é este: ocorreu um milagre, concretizado por uma figura real de elevadíssimo prestígio, nas Terras de Santa Maria. Apesar de se atribuir o epíteto de “Santa” a esta Rainha, conhecem-se apenas dois episódios, em vida, de suposto milagre; o milagre das rosas e o milagre das laranjeiras. Estes terão sido os dois momentos, digamos assim, mais supra-humanos da sua vida. Um deles ocorre nas Terras de Santa Maria, atual Santa Maria da Feira. Isto devia ser motivo suficiente para ficarmos com os olhos bem abertos, uma vez que os relatos da época chegaram até nós, o que implica que algo de verdadeiramente fora do comum teve de ocorrer por estas paragens, em dado momento da vida da Rainha.

O segundo ponto é este: o suposto milagre terá sido amplamente difundido, o que se atesta por ter chegado até nós, tendo sido inclusivamente recriado em termos artísticos, conforme bem demonstra uma pintura de André Gonçalves, de 1730, “O Milagre da Arrifana”, de certa envergadura (2.20 metros x 1.40 metros), que atualmente se encontra bem longe de “casa”, em Estremoz. Em relação a esta pintura não existe a menor dúvida que o milagre retratado é na Arrifana do nosso atual município, uma vez que o Castelo da Feira é bem evidente no trabalho do artista, tendo o próprio sentido necessidade de o plasmar na sua obra.

O terceiro ponto a ter em conta é o seguinte: a Rainha Santa Isabel e o seu esposo, o Rei D. Dinis, ficaram profundamente conhecidos por introduzirem um culto em Portugal que marcou os séculos subsequentes e ainda hoje deixa lastro na psique nacional; o culto do espírito santo.

Este ponto em particular, o do culto do espírito santo, necessita de ser devidamente explorado pelas nossas gentes, isto é, pelos apaixonados da nossa Terra, pelos representantes políticos e pelos historiadores locais. O que vou dizer de seguida é polémico e não está comprovado, mas deixarei aqui, com a devida modéstia, algumas linhas que me sempre me pareceram ignoradas entre nós.

Começando pelo Culto do Espírito Santo, ainda hoje praticado na Terceira (Açores) e algumas localidades de Sintra, importa reter que se tratava de uma ideia milenarista ou, dito de outro modo, uma ideia impregnada nas mentes da aristocracia da época com reminiscências no povo que advoga a “mudança dos tempos”. Num mundo em que a religiosidade era uma parte importante da vida de todas as classes sociais, a interpretação das escrituras assumia-se como indispensável para ler o passado, o presente e o futuro. Então, entre as elites da época assumia-se que o mundo seria composto por três épocas, correspondentes ao Pai, Filho e Espírito Santo, interligando o Pai ao período relatado no Antigo Testamento, o Filho ao período relatado no Novo Testamento, e o Espírito Santo ao período do “fim dos tempos”, um período pós-apocalíptico, um período em que reinaria o Bem e o Amor para sempre.

Esta perspetiva que vigorou entre nós, com muito impacto, deixou profundas marcas, conforme indiquei, nos costumes e na forma como pensamos. O V Império, a ideia transcendental de um império cultural promovido pelos portugueses em todo o mundo, o último dos impérios do mundo, conforme se compreender, bebe diretamente da fonte original do Culto ao Espírito Santo. As raízes são precisamente essas e o V Império um produto direto dessa sementeira, cujos poetas nacionais cantaram à saciedade. O mesmo se pode dizer das palavras Saudades (voltada para o passado) e Saudade (voltada para o futuro), visto que ambas traduzem aquele sentimento de incompletude e de melancolia, um sentimento de falta por algo que se encontra por cumprir. E talvez a evidência máxima desta ideia impregnada na psique coletiva, de fazer chegar ao mundo o último dos “Impérios”, foram os Descobrimentos Portugueses, iniciados pelo esposo da Rainha Santa Isabel, D. Dinis, e cuja esfera armilar representando o globo é a demonstração de tal ambição. O que é o Sebastianismo português se não esta perspetiva de que emergirá de entre nós um salvador nacional, uma figura mítica, que se encontra destinada a fazer-nos cumprir uma determinada missão nacional? A sementeira do culto do espírito santo é, também aqui, a origem de mais um mito nacional que se encontra profundamente inculcado na nossa mente e influencia a nossa ação coletiva e individual.

Assim sendo, penso estar clara a hegemonia do papel do Culto do Espírito Santo, profusamente difundido pela Rainha Santa Isabel em Portugal, naquilo que ainda hoje é o pensamento nacional e como nos vemos no mundo. Então e Santa Maria da Feira? Bem, pelas Terras de Santa Maria, para além do referido nos pontos um e dois, onde se assinalou que algo transformador terá por cá ocorrido, quero salientar que ainda hoje, entre nós, os fragmentos de uma memória muito distante são, todos os anos, reproduzidos.

A Festa das Fogaceiras, a meu ver, tem origens muito mais remotas do que as assumidas oficialmente. As similitudes entre a Festa das Fogaceiras e a Festa dos Tabuleiros em Tomar são mais do que uma mera curiosidade. Em essência são a mesma coisa. Em ambos os casos, as festas eram organizadas pelos nobres (uma invulgaridade), não eram controladas diretamente pela igreja, procuravam oferecer um bodo aos pobres e o bodo era transportado por meninas virgens trajadas de branco. Ambas são um tributo ao Espírito Santo, aquilo que viria ser o prelúdio da ideia de V Império. Mas se dúvidas ainda subsistissem é importante recordar que o atual Convento dos Loios, bem no centro da localidade e das festividades, era inicialmente designado por Convento do Espírito Santo. São necessárias mais provas? Os indícios de que a peste foi uma miscigenação posterior são muito fortes, o que me permite antever que as ditas fogaceiras têm muito mais do que 500 anos e que foram, desde o seu início, uma festa dedicada ao Culto do Espírito Santo.

Como poderá o culto ter iniciado nestas paragens? Pois, Caro(a) Leitor(a), creio que não poderão subsistir muitas dúvidas que terá sido por influência direta da Rainha Santa Isabel, caso contrário como poderia ter ficado de tal forma marcada a sua passagem, se algo de profundamente significativo não tivesse sido concretizado nas Terras de Santa Maria? Recorde-se que o próprio Castelo da Feira havia sido outorgado por D. Dinis à sua esposa.

É, pois, minha convicção que a Rainha Santa Isabel esteve cá, não só de passagem, acompanhada por um pequeno séquito de serviçais, e influenciou com os seus ideias as elites locais, a tal ponto de se iniciar o culto e a festividade ao Espírito Santo. Assim terá sido, ao ponto de emergir futuramente um Convento dedicado precisamente ao Espírito Santo e a festividade perdurar por séculos a fio.

Chegados aqui, Caro(a) Leitor(a), como é possível que as atuais elites locais ignorem tudo isto? Alguns ignoram por completo. Outros não compreendem a pertinência. Outros não alcançam a relevância disto para o território. Outros, ainda, desdenham. Com elites assim, o que podemos esperar? O suposto percurso da Rainha Santa Isabel está traçado e é popularmente conhecido. Já viu alguma preocupação com o mesmo? Consegue imaginar, Caro(a) Leitor(a), quantos milhares nos visitariam para conhecer uns “Passadiços da Rainha”? Ou para conhecer os resquícios de uma Festa dedicada ao Espírito Santo? Ou para conhecer uma réplica da pintura alusiva ao “Milagre da Arrifana” que poderia ser devidamente exposta no nosso Castelo, caso existisse?

Estas e muitas outras questões foram sendo levantadas por mim, mas o nevoeiro é demasiado forte para ser dissipado. Com este contributo deixo escrito algo para continuar a ser explorado.

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Daniel Tavares Gomes
COLUNISTA
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