Os cultos e os contra-cultos
Cultura Opinião

Os cultos e os contra-cultos

Tenho assistido criticamente aos convénios da cultura feirense. Algumas mordomias massivamente perfiladas por meia-dúzia de formalismos e, no fim, um ego que não se preza nem pelos encantos do berço. Na forma-criação do que é feito em Santa Maria da Feira, só o esquecimento vence. Salvando-se (raros casos) os apadrinhamentos e as preferências próprias de quem, por Canedo, abençoa eventos semiprivados, destinados a acalorar a oposição quanto aos fundamentos contra uma descentralização vaga que os decisores tanto apregoam.

Nada contra a artista, mas não é aprazível a utilização de fundos públicos para satisfazer vontades pessoais e saciar birras. Nem devem classificar-se (implicitamente) performances como sendo de primeira ou de segunda, principalmente quando a escolha é arbitrariamente sugestiva. Enquanto o evento no Porto Carvoeiro foi o deleite de poucos curiosos, o que se realizou em Paços de Brandão apenas recebeu a bênção de S. Pedro; e bastante abençoados fomos, mas em momento algum pela presença dos nossos mais dignos representantes!

Não é falta de bom gosto, mas sim de gosto pelo que faz falta. Há sempre o domínio dos que são cultos, e os que o são, mas em dissonância, estarão sempre contra. Apesar disso, não há motivos para alarme. Aliás, grandes e audazes só os motivos dos que ainda se movem pelo elitismo da minoria dominante. Um certo provincianismo de outros tempos que nem aos mais conservadores agrada. É uma fatalidade para quem assiste com o coração nas mãos, ou não fosse motivo suficiente o saber que ainda há pais e mães que, no final da semana, se opõem às propostas da metrópole portuense, a favor do que é natural e próximo. Um conceito de localidade que ainda vagueia por alguns conterrâneos, mas que se perde com a falta de motivação de terceiros. Veja-se: nem palco, nem luz, nem som, nem promoção — só a cegueira dos que ficam intimidados com o que se tem vindo a propor, a fim de um acesso mais justo à cultura.

Se é digno de aplausos o virtuosismo do crème de la crème camarário, é justo sublinhar que, em pleno Conselho Municipal, ainda se gracejam “concursos” disputados, sendo insuficientes as vagas para os jovens naturais e residentes no nosso território, mas com a justificação de que é preciso receber mais e melhor, ainda que oriundo do exterior. E os vizinhos, pela proximidade, são acolhidos com cinco pontos, no espectro criterioso de seleção — cinco pontos administrativos, diga-se, à moda da maquinaria funcional — pelo simples facto de serem forasteiros. Vale dez pontos se, mesmo não sendo residente ou natural do território, frequente alguma escola de música (oficial ou não, curiosamente) do concelho.

Acima de qualquer coisa, promove-se o desrespeito pelo artista, pelo calor do povo, visto como massa bruta, ou como filisteu da infantilidade. A cada novo ano, perde-se um pouco do rasto de grandeza que deve definir e ditar os trâmites evolutivos de Santa Maria da Feira; isto é, se alguma vez existiu essa intenção em ser maior. Não convence o investimento avultado em espetáculos que em nada se aproximam da sensibilidade local: não que seja uma escolha fácil ou óbvia, mas algo que exige maturação e suporte. Terceiriza-se tudo e, com promessas vãs, só se recorre ao associativismo local quando não existe uma empresa cordialmente posicionada para o efeito.

O que se exige? Um desenvolvimento sensitivo que começa nos pequenos. Lá para a frente, irão de arrasto os pais, os avós e os tios, com a graça de ver a criançada feliz: um ciclo produtivo que, no fim, gerará o conforto de quem cria e de quem, amavelmente, reconhece a criação. Ainda há tempo… mas falta a vontade e a disposição.

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